Desde o início da pandemia de covid-19, o Brasil sequenciou 1.768 genomas do vírus Sars-CoV-2, pouco mais de 1% dos 134.859 sequenciamentos feitos no Reino Unido, indicam dados da plataforma de ciência colaborativa online Gisaid acessados e compartilhados com a BBC News Brasil na semana passada.
Segundo virologistas, esse número baixo de sequenciamentos impede o Brasil de saber com precisão quantas mutações, de fato, circulam no país e, por consequência, se são mais perigosas ou até mesmo mais transmissíveis, como é caso da variante do coronavírus detectada recentemente no Reino Unido que vem causando preocupação ao redor do mundo.
Eles assinalam que o problema não é só a falta de estrutura, mas de investimentos, devido aos seguidos cortes na área da ciência e da tecnologia desde 2015. A título de exemplo, naquele ano, os gastos com pesquisa científica no Brasil somaram R$ 14 bilhões. Neste ano, a previsão é de apenas R$ 5 bilhões, queda de 65%.
O sequenciamento do genoma de um vírus permite identificar suas características, como age e de qual região veio.
Como os vírus se adaptam a partir de mutações, dizem os especialistas, esse monitoramento constante é importante, influenciando a formulação de políticas públicas e também o desenvolvimento de vacinas.
“Tem alterações em algumas partes do genoma que não acontece nada. Mas se ocorre em um local chave que afeta a ligação (do patógeno) com o sistema imune, aí é preocupante”, diz à BBC News Brasil Ana Tereza Ribeiro de Vasconcelos, à frente da pesquisa com genomas do Rio e coordenadora do Laboratório de Bioinformática do Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC).]
Vasconcelos esteve envolvida na descoberta de uma nova linhagem do coronavírus na semana passada. A cepa, que derivou de outra variante que já circulava no Brasil, a B.1.1.28, originada na Europa, foi identificada pela primeira vez em amostras do Estado do Rio de Janeiro. Segundo Vasconcelos, na linhagem identificada no Rio de Janeiro, não há indícios que o vírus tenha tido esta periculosidade aumentada.
Já a variante britânica, identificada como B.1.1.7, fez vários países fecharem suas fronteiras com o Reino Unido, inclusive o Brasil. Pesquisadores e governantes britânicos alertaram que a variante se tornou predominante em boa parte do território, incluindo Londres, sofrendo mais de dez mutações que podem ter facilitado sua transmissão.
Essa cepa também já foi encontrada na Espanha, França, Suécia, Austrália, Dinamarca, Itália, Islândia e Holanda, entre outros. Segundo o secretário de Saúde do Reino Unido (equivalente a ministro), Matt Hancock, ela está fora de controle.
“Das amostras do Rio de Janeiro não tinha nenhuma variante igual à da Inglaterra. Mas se eu sequenciar o Brasil inteiro, pode ser que eu ache essa ou outras mutações. Não temos os recursos que o Reino Unido tem. O que estamos fazendo é praticamente um ato heroico de resistência, em um momento em que a ciência vive um momento de politização. Claro que poderíamos estar fazendo muito mais”, acrescenta Vasconcelos.
Falta de recursos
Anderson Brito, virologista brasileiro baseado nos Estados Unidos, concorda. Ele assinala que o sequenciamento do vírus permite “captar mutações mais raras com mais facilidade”.
“Não vemos os mesmos esforços de acompanhamento no Brasil, por meio dessa vigilância genômica. Evidentemente existe interesse, mas não há verbas nem pessoal suficiente para fazer isso”, diz Brito, que faz pós-doutorado na Universidade de Yale, nos Estados Unidos.
Brito cita como exemplo a falta de equipamentos, como reagentes, necessários para realizar o sequenciamento. Esse material, explica ele, é importado, já que o Brasil não tem produção própria.
O especialista também diz acreditar que o governo brasileiro agiu “tarde demais” ao suspender os voos de e para o Reino Unido. O veto entrou em vigor na última sexta-feira (25/12), apesar de o anúncio do governo britânico ter acontecido quase uma semana antes, no sábado (19/12).
“Se as pessoas continuam a ir de um país para o outro, evidentemente existe a possibilidade de que essa mutação já esteja no Brasil”, diz ele.
“Também acredito que ainda não detectamos muitas variantes virais que circulam no nosso país”, acrescenta.
Em entrevista recente à BBC News Brasil, o brasileiro Tulio de Oliveira, responsável pela descoberta da nova mutação “mais transmissível” do coronavírus, sugeriu que o Brasil aumentasse “a parte de sequenciamento do vírus para tentar entender melhor quais são as linhagens circulantes e tentar detectar ora uma linhagem que circule muito mais rapidamente ou uma introdução externa de uma linhagem que tenda a circular e causar mais infecções”.
Oliveira é diretor do laboratório Krisp, na escola de Medicina Nelson Mandela, na Universidade KwaZulu-Natal, em Durban, na África do Sul, onde vive desde 1997. Ele chefiou a equipe que descobriu a nova variante do coronavírus no país e compartilhou os dados com a OMS (Organização Mundial de Saúde), o que, por sua vez, permitiu ao Reino Unido descobrir a sua própria variante.
As duas variantes são mais transmissíveis do que a original, mas, por enquanto, não se sabe se são mais letais, segundo Oliveira.
Elas compartilham algumas semelhanças, mas evoluíram separadamente. Ambas têm uma mutação — chamada N501Y — localizada em uma parte crucial do vírus, usada para infectar as células do corpo humano.
Na África do Sul, a nova variante identificada por Oliveira e sua equipe estaria por trás da segunda onda da pandemia no país. Ela se espalhou rapidamente e se tornou a forma dominante do vírus em algumas partes do território, o que resultou na saturação do sistema de saúde.