Violência contra a mulher na quarentena – socialização masculina como causa e estratégia de prevenção

A violência contra a mulher é uma problemática que afeta muitos países e o Brasil está entre os mais afetados, realidade que também está presente no estado do Acre. As denúncias na Delegacia da Mulher superam as de todas as demais e os efeitos dessa violência atingem as mulheres, os filhos e demais parentes, os próprios autores da violência e toda a sociedade.

Esse texto está estruturado em tópicos por uma questão didática e buscarei expor alguns elementos da construção e manifestação da masculinidade tradicional que associados ao momento de isolamento social intensificam essa problemática. O final é reservado para uma estratégia de prevenção e enfrentamento.

Causas e Manifestações

Homens são socializados (não apenas pela família), em maior ou menor grau, desde a infância, para adotarem certos comportamentos e descartarem outros. Via de regra, são incentivados a ser fortes sempre, não a demonstrarem emoções ligadas a fragilidade (“homem não chora”); a desbravarem e conviverem nos espaços externos (quadras esportivas, praias e rios, praças), não os domésticos; a serem provedores econômicos, não cuidadores; a resolverem conflitos com violência, não com diálogo (o que ocorre inclusive em atividades de lazer ou esportivas) .

Nesse momento de restrição social, que limita a autonomia, a afirmação simbólica de poder/realização, e gera sensação de impotência, afloram comportamentos compensatórios ou reativos ao que fere o “estado natural” das coisas.

Ao aumentar o convívio no âmbito doméstico, os conflitos interpessoais (algo normal nas relações humanas) aumentam proporcionalmente; ao mesmo tempo, a falta do convívio nos espaços públicos (trabalho, clubes, bares, entre outros), que são reforçadores da masculinidade tradicional, eleva a tensão relacional. Combinados, esses dois fatores se tornam um gatilho para a ocorrência de violência que tem as mulheres como alvo principal.

A perda do poder econômico (responsável pelo estatuto de provedor), por sua vez, fatalidade que atinge muitos nesse momento, é compensada por outra forma de poder: novamente o uso da força e subjugação se apresenta como forma de autoafirmação.

Ainda há os reforçadores culturais expressos, ora de forma sutil, ora de forma descarada, que classificam as mulheres como inferiores aos homens, como suas posses. Com efeito, o papel de servidão doméstica (cuidar dos filhos, lavar roupas, fazer comida) e outros tidos como femininos, devem ser exercidos “de forma impecável”, sob pena de “justificada” violência; e ainda pior, (os reforçadores culturais) colaboram com a prática de abuso sexual contra companheiras, enteadas, sobrinhas, irmãs e filhas biológicas; violência que possui maior incidência nas áreas rurais (as falas dos autores são incisivas sobre seus “direitos de posse”).

Efeitos cíclicos

Inquestionavelmente os altos índices de mortes e vidas sofridas das mulheres são os maiores prejuízos dessa problemática, que justificam todas as formas de iniciativas para enfrentá-la; mas, como disse no começo do texto, até mesmo os homens são afetados, devido ao caráter transgeracional da violência, e esse entendimento é fundamental para o maior êxito no enfrentamento.

Crianças que convivem com a violência de pais (ou figuras paternas) contra suas mães (ou figuras maternas) sofrem e internalizam isso como trauma e/ou condição de vida determinada, pois estão em fase de assimilação e aprendizagem pelos exemplos (e quem seria mais espelho do que as pessoas mais próximas e que mais amam?).

Isso se torna uma inscrição em suas personalidades que os acompanham por toda a vida (quando não rejeitada), e promove a replicação, no futuro, quando estabelecem seus relacionamentos afetivos amorosos. Os homens replicam o uso da violência como resolução de conflitos ou como tentativa de aliviar suas frustrações/estresses, e as mulheres suportam essa situação (uma prisão emocional cruel e poderosa). Por isso (e os reforçadores culturais, como igrejas), muitas mulheres têm grande dificuldade de romper o ciclo da violência, constatação feita por pesquisas nacionais e internacionais (em média uma década para denunciar violências sofridas).

Homens, por seus turnos, que passam por alguma intervenção, como grupos reflexivos, costumam relatar que não sabiam que praticavam violência ou que estavam errados. Eles também relatam, muitas vezes, que no ato da violência simplesmente perderam o controle, o que corrobora com a socialização recebida para expressar emoções de forma violenta.

Prevenção e enfrentamento

Os homens costumam encarar a denúncia e questionamento das mulheres sobre essa problemática com aversão, entendem como afronta; acreditam que elas querem ser superiores, que querem “inverter as coisas”. A primeira vez que percebi isso foi durante uma oficina em que uma amiga psicóloga falava sobre a igualdade entre homens e mulheres para uma turma do ensino médio. Mesmo havendo paridade no sexo entre os alunos, e tendo a presença de uma professora da escola, as reações à fala eram de aversão e deboche. No momento que comecei a falar os alunos ficaram atentos. Ficou claro que precisávamos de nova estratégia.

Lubiana, Mauro Vandame e o líder indígena Ninawa / Foto: arquivo pessoal

Para minha grata surpresa pouco tempo depois tomei conhecimento da Campanha do laço Branco – Homens Pelo Fim da Violência Contra a Mulher. Essa campanha chegou ao Brasil no começo deste século e trouxe uma estratégia inovadora: sensibilizar e engajar homens no enfrentamento à violência contra a mulher.

Durante anos realizamos passeatas, distribuição de informativos e lacinhos (que simbolizam o engajamento na campanha), palestras, ações de mídia e oficinas reflexivas. Percebi que a estratégia de comunicação de homem para homem é muito satisfatória, principalmente dirigida a adolescentes que ainda não incorporaram o papel tradicional em relacionamentos permanentes, e necessária para, junto de outras iniciativas, eliminar uma das maiores mazelas de nossa sociedade.

Devemos falar a outros homens que é inaceitável cometer essa violência e que os relacionamentos podem ser de outra forma, melhor; afirmar que as mulheres não são nossas posses ou inferiores, que a verdadeira força/honra está em não usar violência para resolver conflitos ou se afirmar como homem/macho; ela (a honra) está em aceitar alguma dor e sofrimentos pelo fim do relacionamento, por exemplo, ou situações adversas da vida sem tentar compensar ou aliviar com a violência. Não perpetuar esse mal é algo realmente significativo/digno para fazermos nesse momento limitante. Não seja autor dessa violência e não permita que ela ocorra.

Cleib Lubiana – psicólogo

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