Rodrigo Farias escreve: “Os sonhos de um menino pobre do Papoco”

Botequim é bom em qualquer lugar, em qualquer horário, mas os da Tijuca têm atrativos inigualáveis, entre eles as músicas… tem bar para todo paladar etílico e som de todos os estilos e volumes, basta “garimpar”. Particularmente, eu sou o melhor garimpeiro de boteco que conheço.

Naquele final de tarde de quarta-feira, retornando para casa, parei no Bar Roquinha para dois chopps e um sanduíche de filé com queijo.

Estava tocando na vitrola o samba Espelho de João Nogueira e Paulo César Pinheiro, canção que conta a história de um jovem que perdeu o pai e teve que seguir tocando a vida com talento e dignidade para não decepcionar o pai falecido.

Lembrei de um acreano, do Papoco, filho de mãe lavadeira e pai com sérios problemas com o álcool. Um adolescente que foi embora do estado, lá pelos idos de 1960, com apenas 17 anos de idade, tentar melhorar a vida e estudar no Rio de Janeiro, então Capital Federal, em processo de transferência para Brasília.  

Se hoje em dia, com toda a tecnologia e programas sociais que visam diminuir a desigualdade social, já é muito pouco provável que um menino do Papoco, extremamente pobre, vença na selva das grandes cidades e se forme em medicina em uma das melhores universidades do país, imaginem há mais de 60 anos, quando nem sequer estrada asfaltada para Porto Velho, a capital mais próxima, existia. 

Pois, o menino do Papoco foi, passou dificuldades extremas, morou e comeu de favor, superou os osbstáculos e se formou médico pela Universidade do Brasil, atual UFRJ, 9 anos após a sua chegada à cidade carioca. E assim seguiu a sua trajetória, desafiando a vida e pisoteando obstáculos.

Exerceu a medicina nos estados de Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro, mais precisamente na Companhia Siderúrgica Nacional, onde fora aprovado em um concurso público com apenas duas vagas para médicos, teve dois casamentos bem-sucedidos e foi reconhecido e homenageado por onde passou.  Mas algo incomodava o irrequieto “menino do Papoco”.

Quando criança dizia pelas vielas do bairro que um dia seria médico para ajudar aqueles que, como o seu pai, sofriam com o alcoolismo. Não se importando com a baixa probabilidade desse sonho se tornar realidade, tampouco com os deboches dos colegas, realizou parte do sonho, mas faltava a outra metade: voltar ao seu estado e ajudar os dependentes químicos a se tratarem. Foi ele a primeira pessoa a dizer no Acre que dependência química é uma doença e não uma escolha, como pensam alguns desavisados.

Pois, no ano de 1992, acompanhado da esposa e dos três filhos mais novos, retornou para sua terra natal, onde, além de clinicar, começou a realizar a segunda parte do seu sonho de menino pobre. Fundou, pouco tempo depois, com ajuda da esposa e de alguns abnegados sonhadores, como ele, a Associação dos Parentes e Amigos dos Dependentes Químicos – Apadeq – , até então o único centro de tratamento inteiramente grátis do país. “A droga é muito democrática, atinge todas as classes sociais”, costumava dizer.

Procurando ampliar o alcance do tratamento a um número cada vez maior de pessoas, se elegeu vereador e, na sequência, deputado estadual. Foi um político raro no país: um político de causa, com uma bandeira absolutamente cristã e altruísta. Ficou conhecido como o “doutor dos noiados”.  Saiu da política mais pobre do que entrou. Outro feito raríssimo no Brasil. Por conta disso, ouvi certa vez de um deputado neófito que tinha medo de acabar o seu mandato como ele acabou o dele, menos abastado do que entrara. Para alguns, como para esse jovem parlamentar, isso deve ser um defeito.

Em 2014, o sempre irrequieto menino do Papoco deixa o Acre mais uma vez, rumo ao estado do Espírito Santo, onde clinicou e em menos de dois anos nas terras capixabas recebeu uma bela homenagem da Assembleia Legislativa do Estado. No Acre o seu legado permanece até os dias de hoje, seja na medicina, no projeto social ou na política. É uma grande felicidade toda vez que encontro alguém que me diz algo do tipo: “seu pai salvou a minha vida”, “foi seu pai que me tirou da barriga da minha mãe”, “seu pai me libertou das drogas”, “ele é um exemplo raro na política” etc… Isso acontece com grande frequência. Toda vez eu respondo com um sorriso tímido e saio de perto para que não me vejam lacrimejar de tanto orgulho e felicidade.

Em uma entrevista que dei em 2006, para um documentário sobre a sua vida, disse que feliz eram os que, como eu, podiam acreditar em super-herói, mesmo depois de adulto, que eu acreditava porque tinha um dentro de casa.

O nome dele? Donald Fernandes, o menino pobre do Papoco. Meu pai!   

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