Nelson Rodrigues, o melhor personagem de si mesmo

Os bares do Baixo Gávea no Rio de Janeiro eram muito frequentados por boêmios, artistas e intelectuais. Segunda-feira era o dia que mais lotava, no que foi batizada pela boêmia carioca de “Segunda sem Lei”.

Naquela noite de segunda, após pedir uma caipirinha de lima-da-pérsia e uma porção de lula a vinagrete, fiquei esperando uns amigos que estavam por chegar. O bar era decorado com alguns quadros que estampavam fotos e frases de personalidades da nossa literatura. Em um deles estava o jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues. De quem sempre fui grande admirador.

“Na vida, o importante é fracassar.”  

Não conheço ninguém de sucesso que não tenha fracassado inúmeras vezes.

Tenho um hábito antigo de me desconectar do mundo ao meu redor para prosear com meus pensamentos. Naquela noite, enquanto esperava os amigos, divaguei sobre Nelson Rodrigues.

Nelson baixou a cortina no dia 21 de dezembro de 1980, em uma manhã quente de quase verão carioca, aos 68 anos de uma vida de muito sucesso e pouco dinheiro. Escritor, jornalista, romancista, teatrólogo, contista e cronista de costumes e de futebol brasileiro, é considerado o mais influente dramaturgo do Brasil.

Sua morte ainda foi recheada com um último ingrediente de ironia e tragédia: na tarde daquele domingo, Nelson faria 13 pontos na Loteria Esportiva, em um bolão que entrou com o irmão Augusto e amigos de redação do jornal O Globo

Nelson revolucionou o teatro brasileiro, mas nem sempre foi assim, suas peças retratavam a classe média carioca com a incrível crueza do dia-a-dia. Essa forma de linguagem não era bem aceita, à época, pela crítica, ainda influenciada pelos teatros mais eloquentes e poéticos.

Mestre das frases incríveis, o tricolor Nelson Rodrigues, escreveu sobre o arquirrival rubro-negro que “Cada brasileiro, vivo ou morto, já foi Flamengo por um instante, por um dia.”

Para qualquer um, a camisa vale tanto quanto uma gravata. Não para o Flamengo. Para o Flamengo a camisa é tudo. Já tem acontecido várias vezes o seguinte:- quando o time não dá nada, a camisa é içada, desfraldada, por invisíveis mãos. Adversários, juízes, bandeirinhas, tremem, então, intimidados, acovardados, batidos. Há de chegar talvez o dia em que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnicos, nem de nada. Bastará à camisa, aberta no arco. E diante do furor impotente do adversário, a camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável.”q

No jornalismo, embora não fosse reconhecido como um jornalista literário, no completo sentido da narrativa, o “anjo pornográfico” era um crítico ao jornalismo “objetivo” que surgia no Brasil no início dos anos 50. O jornalista e escritor Lago Burnett completa o raciocínio em seu livro A Língua Envergonhada”.

“Nelson Rodrigues tem razão quando se insurge contra os que chama de idiotas da objetividade, ironizando o mecanismo e a frieza completa da imprensa de hoje, que repele o ponto de exclamação até mesmo quando se trata de exclamação feita pelo entrevistado. (…) Sempre sonhei com um jornalismo claro, em que se conciliassem a objetividade e o humanismo (…) é impossível exigir que todos sejam brilhantes. Mas é imprescindível que sejam corretos”.

O diretor de Redação no Jornal da USP, Marcello Rollemberg, em artigo publicado em 2020, classifica Nelson Rodrigues como o melhor personagem de si mesmo, “uma espécie de arremedo de “herói trágico” de si mesmo, melhor personagem que criou, ambivalente e incômodo, tinha certeza de que a vida não podia ser feliz.”

Tive meus pensamentos “rodrigueanos” interrompidos pelo barulho da turma que acabava de chegar, mas não sem antes lembrar de uma das frases de Nelson que mais curto:

“De gente burra eu só quero as vaias!”.

– Alan, me traga mais uma caipirinha, por favor.  

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