Minha partilha (uma crônica sobre os desencontros da vida)

Texto originalmente publicado na extinta revista outraspalavras, em 2001

Uma das mais belas crônicas da literatura brasileira foi escrita, claro, pelo capixaba Rubem Braga. “A Partilha” fala de dois irmãos que se separam depois de um desentendimento. O narrador da história é o mais velho, que vai dizendo quais pertences pretende levar de casa.

Ele explica que quer ficar com a rede, pois o outro irmão nem gostava muito de rede, “quem sempre deitava nela era eu”. O retrato da irmã pode ficar com o mais novo, mas o retrato da mãe o mais velho quer levar, porque “você tinha aquele dela de chapéu, e você perdeu”. Linhas e chumbadas, o puçá e a tarrafa, o fogão e as cadeiras, a estante e as prateleiras, os dois vasos de enfeite, o quadro e a gaiola, o alçapão, “tudo é seu”.

Mas o canivete o mais velho faz questão de levar, porque quer guardá-lo como recordação. “Quem me perguntar por que eu gosto tanto desse canivete eu vou dizer: é porque é lembrança do meu irmão”.

Reli a crônica pela enésima vez e quis fazer a minha versão, que saiu mais ou menos assim:

Você pode ficar com a cama de casal, com os móveis da sala e da cozinha, com a televisão. O computador foi você quem comprou, é todo seu. Mas alguns livros eu levo: o Caetés, o Dom Casmurro, o do Tchecov e esse aqui sobre o Japão.

A estante é sua, as cortinas são suas, o ferro de passar é seu. Mas o Aurélio vai comigo porque foi do meu irmão. Até escrevi uma crônica sobre esse dicionário, e lembro que você a leu e disse “suas crônicas estão cada vez melhores, meu amor”.

O ventilador, o criado-mudo, os dois cachorros são seus. A verdade é que você nunca cuidou deles, nunca lhes deu banho ou remédio, mas você vai precisar mais deles do que eu. Agora a enciclopédia é minha, cada volume vai comigo, da Barsa eu não abro mão.

Não faço questão da máquina de lavar, das poltronas, do aparelho de som ou do fogão. Queria levar o vídeocassete porque gosto muito de ver filme, mas foi sua mãe quem lhe deu. Vou levar, porém, uma das redes, porque apesar de não gostar de rede, é melhor do que dormir no chão.

Fique com os discos, com os quadros e com as fotografias. O telefone também fica nesta casa, pois nunca me pertenceu. A escrivaninha é sua, o guarda-roupa também é seu. Vou levar o alicate e o martelo, a pedra de amolar e o facão. No peito não vai mágoa, só este coração que lhe dei muito novinho, mas que agora envelheceu.

E se me perguntarem: “Há vantagens em estar partindo, irmão?”, vou mentir que sim, há muitas vantagens, e então lembrarei do dia em que cansei de apertar parafuso ao pé do Monte Fuji e voltei pra te conhecer e descobrir que a dor maior não está em repartir os cacos da vida – mas em ouvir o ruído dos ferros se fechando aqui neste portão.

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