Tem dias que o elevador “resolve” demorar demasiadamente, para em todos os andares antes de chegar ao meu. Mas neste dia eu estava com o pensamento tão longe que nem vi o tempo passar. Pensava em uma gente sofrida de um povoado muito longe daqui.
Uma gente que já havia sido reconhecida mundialmente como um povo ordeiro, amável e trabalhador, mas que era agora movida pelo ódio. Uma gente odiosa a qualquer opinião contrária. Na política, então, é que essa ira ao contraditório se exacerbava ainda mais. Muitas pessoas abandonaram amizades de anos, deixaram de falar com familiares e vizinhos por conta de divergências político-ideológicas. E o que é pior: para seguir com fidelidade canina o seu “político-ídolo” acima de qualquer coisa. Principalmente do bom senso.
Esse distante povoado tinha passado quase três décadas governado pelos militares, em um golpe de Estado. Período de muito sofrimento, tortura e morte. Ser simpático ao regime comunista, nessa época, era quase que uma sentença de morte ou de exílio. Não sem antes receber uns choques elétricos nas genitálias ou ter arrancadas algumas de suas unhas com alicate de obra. Um período sombrio e tenebroso.
Após a redemocratização, esse povoado começou a escolher novamente os seus representantes, através do voto direto. O primeiro presidente eleito fora impedido pelo Congresso pouco tempo após sua posse. Anos depois esse mesmo presidente fora absolvido de todos os processos de corrupção que motivara o seu impeachment. De todos!
Entre acertos e erros, o que é comum em todo regime democrático, a população desse distante povoado seguia elegendo os seus representantes a cada quatro anos. Depois de um grande período governado pelo centro, quando incontestavelmente tivera grandes avanços, principalmente na questão econômica, a população resolvera dar uma chance para um político mais popular, que viera do “chão de fábrica”, elegendo para presidência um político da chamada esquerda.
Embora esse papo de esquerda e direita, vindo lá de trás, da Revolução Francesa – quando os membros da Assembleia Nacional se dividiam em partidários do rei à direita do presidente e simpatizantes da Revolução à sua esquerda – esteja por deveras demodê, o povo deste lugar gostava de rotular, a si e aos outros, como sendo de esquerda ou de direita. É verdade que a maioria nem sabia, ao certo, o que isso significava. Mas o fato é que, um presidente vindo do povo, com ideais progressistas fora eleito para governar o povoado.
Depois de quatro anos esse operário fora reeleito pela população para mais quatro anos de presidência. E após oito anos à frente da nação, ajudou a eleger uma de suas assessoras para ocupar o seu lugar. E essa mesma assessora, assim como ocorreu com o seu ex-patrão, acabara sendo reeleita pelo povo, para um segundo mandato. Mas o distante povoado já estava dividido pelo ódio. Não conseguia mais aceitar o contraditório, tampouco a derrota imposta pelas urnas. Em um golpe, amparado pela constituição local, arrancou da presidência a ex-assessora, assim como já havia feito anos atrás com outro presidente. A diferença entre o primeiro presidente impedido e a ex-assessora, é que ela não havia, até então, respondido a nenhum processo de corrupção. Nenhum!
Depois de um período governado pelo vice da presidente impedida, o povoado resolvera eleger para presidência um político conservador. Talvez por estar cansado dos sucessivos escândalos de corrupção dos governos anteriores. Mas a direita conservadora apresentou o seu pior quadro à população daquele lugar. Um ex-parlamentar do baixo clero, que durante muitos anos no Legislativo, aprovara apenas dois projetos de lei. E pior: que havia sido da base de apoio do ex-presidente operário durante os oitos anos de seu governo. Um verdadeiro engodo.
Em menos de dois anos do governo conservador, que havia prometido na eleição que iria acabar com a corrupção no povoado, o presidente se via embrulhado em escândalos de corrupção envolvendo seus filhos. Até o xerife da polícia local ele tentou trocar para salvar a pele do seu guri. O ministro da Justiça pediu demissão, alegando não aguentar as interferências do presidente em sua pasta, no intuito de salvar a pele dos filhotes.
Mas como tudo que está ruim ainda pode piorar, o povoado fora atingido por uma peste que vitimou milhares de famílias. Uma doença nova, portanto, sem cura. Era preciso muita serenidade e competência para gerir a nação naquele momento. Mas o presidente fez questão de menosprezar a doença e a ciência. Inventou remédios milagrosos, descumpriu todas as recomendações para evitar a proliferação do vírus e desdenhou dos mortos.
Quando a ciência, enfim, descobriu a vacina que iria curar a gente do povoado, o ex-parlamentar do baixo clero desdenhou da mesma. Disse que não a tomaria. Que quem a tomasse poderia virar um jacaré. E tantas outras piadinhas sem a menor graça, que esbofeteavam de forma vil aqueles que tinham perdido entes queridos para a doença.
E a gente daquele lugar começava a enxergar que o inseticida estava fazendo mais mal do que a picada do inseto.
O elevador chegou. Estava lotado.
– Bom dia.
Falei e permaneci em silêncio até a sua chegada ao térreo.
Já havia escutado a história deste povoado? Conhece algum lugar parecido? Qual a sua preferência, o inseto ou o inseticida? Ou seria melhor o mosquiteiro?