Rodrigo Farias escreve ‘O incômodo chamado Elza Soares’

Estava no carro, calor desértico e um trânsito colossal em Rio Branco. Tarde de quinta-feira, ligo o rádio para ouvir o programa do colega Clebson Oliveira, por quem tenho profunda admiração. Assim que ligo, a notícia: Elza Soares havia falecido de causas naturais em seu apartamento no Rio de Janeiro, aos 91 anos de idade.

Elza não era “apenas” uma artista excepcional. Ela era a história viva de uma mulher sofrida que, através do seu talento, somado a uma coragem sobre-humana e, claro, uma pitada de sorte, sobreviveu. E incomodou! Sua vida foi uma mistura frenética de dor, alegria, violência, amor… E muito som. Do samba ao jazz, da MPB ao hip hop.

A quem primeiramente Elza Soares incomodou, foi a vida. Sua vida sempre teve tudo para não dar certo. Pois, superando as inúmeras pancadas, Elza sobreviveu. E mais: brilhou!

Teve uma infância de extrema pobreza, nascida no bairro de Padre Miguel, no Rio de Janeiro, ainda muito guria mudou-se com a família para um cortiço no bairro de Água Santa. Aos 13 anos de idade foi obrigada pelo pai a se casar. O marido era um amigo do pai que havia tentado abusar sexualmente de Elza. Seu pai acreditava que só assim “limparia” a honra da filha. Elza sofreu demais neste matrimônio. Todo tipo de violência e abuso. Um ano após se casar, deu à luz ao primeiro filho. Aos 15 anos de idade, seu segundo filho morreu de fome. O marido estava à beira da morte, com tuberculose. Elza, incomodando muita gente e enfrentando o destino, saiu às ruas e trabalhou em diversos locais, entre os quais um manicômio.

Teve uma filha sequestrada pelos patrões. Só a reencontrou quando ela já era adulta. As duas se aceitaram como mãe e filha e, mais uma vez, Elza superou forte pancada da vida e seguiu em frente.

Desde menina, sempre cultivou o sonho de ser cantora profissional. Aos 23 anos de idade, já viúva havia dois, com 4 filhos para criar (dois morreram de desnutrição), se inscreveu no programa de rádio Calouros em Desfile, apresentado por Ary Barroso. Quando subiu ao palco, o apresentador tentou ridicularizá-la e mandou de primeira:

“De que planeta você veio, minha filha”?

Elza “matou no peito” e disparou:

“Do mesmo planeta que o senhor, Seu Ary. Do planeta fome”.

Elza cantou “Lama”, de Paulo Marques e Aylce Chaves, e ganhou nota máxima dos jurados. Ary, então, anunciou que naquele exato momento, acabava de nascer uma estrela. Elza era assim, por onde passava incomodava alguns e brilhava para todos.

Conheceu Garrincha, seu grande amor, em 1962, e iniciaram um romance enquanto ele era casado. Isso incomodou, mais uma vez, a sociedade hipócrita. Diziam que ela tinha acabado não só com o casamento do craque, mas que havia, também, arruinado sua carreira. Elza foi “cancelada”, como diz a rapaziada de hoje em dia. A perseguição chegou a tal ponto, que Elza fora impedida de realizar um show no morro da Mangueira e teve que sair disfarçada para escapar da fúria da multidão.

Um ano após o relacionamento extraconjugal, Garrinha se separou da esposa e começou a namorar oficialmente Elza, com que se casou após 4 anos de namoro.

Ary Barroso esteve certo desde quando previu o nascimento de uma estrela. Na música, Elza seguiu brilhando e incomodando muita gente. Em 2000, aos 70 anos de idade, foi premiada como “Melhor Cantora do Milênio”, pela BBC de Londres. No mesmo ano, estreou uma série de shows de vanguarda, dirigidos por José Miguel Wisnik, no Rio de Janeiro. Em Londres, apresentou-se no Royal Albert Hall mesmo tendo sofrido uma forte queda alguns dias antes, o que lhe rendeu uma semana no hospital.

Muitos anos após, quando contava ao jornalista Zeca Camargo como é ser uma mulher negra e pobre no Brasil, Elza lembrou de quando fez um comentário em suas redes sociais, sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco. Foi atacada e cancelada pelo público, por pessoas covardes e mesquinhas. Elza deu uma gargalhada e disparou:

“É, aos 88 anos e ainda incomodando muita gente”. Siga seu caminho, Elza Soares. E, principalmente, siga incomodando os fracos e covardes com sua coragem e talento. Por onde você estiver.

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