No fim da tarde da última quarta-feira (24/3), um paciente com quadro leve de covid-19 entra pelo quinto dia seguido em uma unidade básica de saúde (UBS) de Sorocaba, no interior paulista.
Desde que a prefeitura autorizou a prescrição do chamado “kit covid” na rede pública, ele sai diariamente de casa para requisitar as cartelas gratuitas de ivermectina e azitromicina.
Quem está do outro lado da mesa desta vez é a médica Maria Flávia Saraiva — que, assim como os colegas nos dias anteriores, tentaria explicar ao paciente que não lhe recomendava a medicação porque não há comprovação científica de que as drogas sejam eficazes contra a doença. Além disso, os medicamentos podem provocar efeitos colaterais sérios.
“E disse que ele nem deveria estar saindo de casa, deveria estar isolado, que indo à UBS todo dia ele poderia estar passando a doença para outras pessoas”, afirma a médica. “Mas ele exigia, insistente. Foi o último paciente do dia. Cheguei em casa estressada.”
Nos últimos meses, Maria Flávia já perdeu as contas das ofensas e xingamentos que ouviu de pacientes e nas redes sociais por defender condutas e posicionamentos baseados em evidências científicas.
E a decisão da prefeitura de distribuir gratuitamente esses medicamentos, ela diz, alimenta o ciclo de polarização.
Pior momento da pandemia
Em março, o sistema de saúde do município chegou à beira do colapso. Na segunda-feira (22/3), 252 dos 257 leitos de UTI disponíveis nas redes pública e privada estavam ocupados, 98%, de acordo com os dados disponíveis em informe da gestão municipal.
Na manhã de terça, conforme apuração da emissora local TV TEM, 113 pessoas que necessitavam de leitos estavam na fila para transferência — 64 aguardando leitos de UTI.
Entre as medidas para fazer frente à piora, a prefeitura criou barreiras sanitárias, vigentes entre esta quinta-feira (25/3) e o próximo dia 4 de abril, para controlar a circulação de veículos, limitou as visitas a supermercados a um membro por família e tem pedido à população que fique em casa e que evite visitar parentes ou fazer churrascos.
Também autorizou a prescrição do chamado “kit covid” nas unidades básicas de saúde sob a justificativa de que o objetivo era diminuir a letalidade e a complexidade dos casos da doença.
Em entrevista à BBC News Brasil, o prefeito do município, Rodrigo Manga (Republicanos), afirmou que ele e sua equipe têm “consciência dos danos” que as drogas podem causar, e que os medicamentos só serão distribuídos quando prescritos pelos médicos, após avaliarem os riscos envolvidos e a necessidade do paciente, para evitar que a população se automedique.
A medida foi questionada pelo Sindicato dos Médicos de Sorocaba e cidades da região (Simesul), que pediu que a prefeitura explicitasse quais dados utilizou para decidir oferecer medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19. Também não há comprovação científica de que eles reduzam a mortalidade e a gravidade de casos da doença.
De problemas hepáticos à ‘falsa segurança’
Comumente usada contra piolhos, a ivermectina foi citada ainda no início da pandemia, quando mostrou ter ação contra o vírus na primeira etapa do processo que determina a eficácia de um medicamento — os testes in vitro, feitos em laboratório.
A alta dosagem usada nos testes, entretanto, é tóxica ao organismo humano.
Desde então, nenhum estudo clínico, feito em seres humanos, foi capaz de comprovar que a droga de fato funciona em doses seguras.
Boa parte dos estudos que costumam ser compartilhados nas redes sociais como evidência de que o medicamento funcionaria como “tratamento precoce” ou em nas primeiras fases da doença tem erros metodológicos graves. A maioria não segue, por exemplo, o método duplo-cego randomizado, o padrão-ouro dos estudos clínicos, que evita que haja viés na pesquisa.
Médicos do município ouvidos pela reportagem destacaram que, além de não funcionar, os medicamentos podem causar graves efeitos colaterais, como intoxicação medicamentosa. Nesta semana, o Hospital das Clínicas da Unicamp, em Campinas (SP), confirmou um caso de hepatite medicamentosa em um homem de 50 anos que estava fazendo uso de azitromicina, ivermectina e hidroxicloroquina. Ele entrou na fila de transplantes de fígado.
“O que temos visto é que pacientes que usam ‘kit covid’ têm evoluído mais rapidamente para hemodiálise. Além de não ter o benefício, há sobrecarga renal e hepática”, observa a infectologista Naihma Salum Fontana, que trabalha nas redes pública e privada do município.
Os problemas, entretanto, vão além dos efeitos colaterais, ressaltam os profissionais.
O caso citado por Maria Flávia é um dos efeitos negativos “não farmacológicos” da medida: ao sair de casa diariamente em busca do tratamento sem comprovação, o paciente pode infectar outras pessoas e contribuir para a disseminação do vírus.
Outro problema, acrescenta a cirurgiã vascular Andressa Bendine, que também atua na rede pública e particular de Sorocaba, é a falsa sensação de segurança que o chamado “tratamento precoce” dá a alguns pacientes, e que tem feito com que alguns levem mais tempo do que deveriam até procurarem o serviço de saúde.
“O paciente já chega em estado muito grave”, diz ela.
Nesse sentido, Nahima lembra um caso recente, em que tratou cinco irmãos, com idades entre 63 e 37 anos. O mais novo foi o que desenvolveu quadro mais grave, o único que precisou ser intubado. Além de não procurar atendimento precocemente, vinha tomando cloroquina, ivermectina e nitazoxanida (antiparasitário conhecido pelo nome comercial de Anitta) — que não haviam sido prescritos pela profissional.
“Todos com a mesma ‘genética’, este último ainda com a vantagem de ser mais novo. Onde está o erro?”, ela comenta.
Fila por oxigênio e falta de sedativos
As histórias compartilhadas por profissionais de saúde do município são semelhantes às que têm sido ouvidas em outras cidades no Estado e no país: médicos, técnicos e enfermeiros dividem corredores com pacientes em leitos improvisados, têm de administrar filas de espera por oxigênio e veem as Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) operando no limite enquanto o estoque de sedativos e bloqueadores neuromusculares, essenciais para intubar os pacientes, atinge nível crítico.
Andressa lembra o dia em que se deu conta de que a situação havia degringolado. Era uma segunda-feira, cerca de duas semanas atrás, quando começava o turno em um dos hospitais em que presta serviço.
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“Nunca vi tanta gente na emergência desde que comecei a trabalhar lá. Aquilo me assustou.”
Com todos os leitos ocupados, a equipe precisou improvisar um local para acomodar os pacientes.
“Chegaram a colocar uma maca ao lado da pia em que os funcionários lavam as mãos.”
A médica Fernanda Simoneti, que trabalha em emergências em hospitais públicos e particulares em Sorocaba, relata experiência semelhante.
“Uma das coisas que têm dificultado o controle da situação é a falta de espaço físico. É difícil separar pacientes covid de não covid.”
O cenário vem piorando desde o início de março, ela afirma. “Muito paciente chega grave, já precisando de suplementação de oxigênio. Tem horas que não tem mais bico de oxigênio na emergência. A gente tenta regular [o volume de pacientes] com o Samu, pede pra não levar mais, mas às vezes as pessoas chegam por meios próprios. Não tem como não aceitar, fechar as portas.”
Os médicos também chamam atenção para os níveis preocupantes de estoque de medicamentos para intubar os pacientes, como sedativos e bloqueadores neuromusculares. Sem a dosagem adequada desses fármacos, pacientes intubados podem acordar durante o procedimento e sentir dor e desconforto que poderiam ser evitados.
“O que paciente grave precisa é de oxigênio, kit de intubação, ele não precisa de ivermectina no tratamento”, pontua Andressa.
Na Santa Casa, que conta com 55 leitos de UTI-covid, quase um terço do total disponível na rede pública, o volume de sedativos e bloqueadores neuromusculares é suficiente para apenas mais uma semana, disse à reportagem o padre Flávio Jorge Miguel Júnior, diretor-presidente da instituição.
Ele afirma que tem boa interlocução com a secretaria municipal de saúde e atribui o problema à falta generalizada desses medicamentos no país.
Sem eficácia comprovada
A decisão da prefeitura de Sorocaba de liberar a prescrição de ivermectina e azitromicina está amparada em uma portaria do Ministério da Saúde que recomenda o chamado tratamento precoce.
No último dia 19 de janeiro, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) encaminhou um ofício à pasta em que pede a revogação de qualquer instrumento que “incentive o uso de medicamentos para covid-19 sem eficácia e seguranças comprovadas e aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)”.
Na terça-feira (23/3), a Associação Médica Brasileira emitiu um comunicado assinado por 81 entidades médicas em que reforçava que esses medicamentos não deveriam ser utilizados em nenhuma fase da doença.
“Reafirmamos que, infelizmente, medicações como hidroxicloroquina/cloroquina, ivermectina, nitazoxanida, azitromicina e colchicina, entre outras drogas, não possuem eficácia científica comprovada de benefício no tratamento ou prevenção da covid-19, quer seja na prevenção, na fase inicial ou nas fases avançadas dessa doença, sendo que, portanto, a utilização desses fármacos deve ser banida”, diz o documento.
À BBC News Brasil o prefeito de Sorocaba afirmou que há “divergência” entre a classe médica sobre o chamado “tratamento precoce” e disse ter sido procurado por profissionais da saúde do município que lhe pediram a liberação.
Afirmou que o “kit” será distribuído apenas com a devida prescrição médica e que vai “reforçar nas redes sociais essa conscientização de que não adianta exigir do médico”, para evitar casos como o relatado no início da reportagem.
“Ele [médico] que tem essa autonomia para fazer os exames no paciente para, a partir daí, fazer ou não essa prescrição. Quem vai decidir se o paciente pode ou não pegar esse medicamento que está à disposição nas UBS é a autoridade máxima da saúde, que é o médico.”
Na segunda-feira, ele acrescentou, a prefeitura deve anunciar uma reorganização das unidades básicas de saúde para que algumas atendam exclusivamente pacientes com covid-19, para evitar a contaminação de pessoas que buscam outro tipo de atendimento.
Manga declarou ainda que a vacinação é a “grande saída” para a pandemia, que a imunização está recebendo toda “força e recurso” do município.
Os R$ 57 mil empenhados para a compra do “kit covid”, diz ele, não precisarão mais sair dos cofres públicos porque “uma distribuidora de medicamentos que é a favor do tratamento precoce” entrou em contato com a prefeitura e se ofereceu para doar os medicamentos.
Manga tomou posse em janeiro de 2021. Seu secretário de Saúde é o médico Vinícius Rodrigues (PSL), que foi candidato a deputado federal em 2018 e é hoje primeiro suplente do PSL de São Paulo para a Câmara dos Deputados.
O ‘kit covid’ e a ética médica
A infectologista Naihma Salum Fontana questiona a ideia de que “o médico pode prescrever o que quiser”.
Ela ressalta que o próprio código de ética médica expressa, em seu artigo 113, que é vedado ao médico “divulgar, fora do meio científico, processo de tratamento ou descoberta cujo valor ainda não esteja expressamente reconhecido cientificamente por órgão competente”.
A opinião do especialista é importante, mas, como ela também pode conter algum grau de subjetividade, não se sobrepõe aos estudos científicos, diz a profissional.