O retrovisor dos ídolos – por Saul Galdino

Acordo embalado pela nostalgia. Domingo sempre tinha cheiro de café fresco e o som da televisão ligada cedo. Era Senna, Giba, Guga, além de Jorginho no futebol de areia. Os canais trocavam de heróis conforme a manhã avançava e nós, meio moleques, sonhávamos alto a cada jogada. O Brasil era uma fábrica de ídolos, ou talvez o mundo ainda permitisse que se fabricassem ídolos. Hoje, olho ao redor e percebo o movimento saudosista crescer. Gente vasculhando o passado em busca de algum motivo que faça o peito bater mais forte, virando o retrovisor, esperando reencontrar uma emoção perdida.

Se antes o verde e amarelo era capa de super-herói, hoje se tornou uma identidade em crise. Chegou-se ao ponto de, no lugar da nossa bandeira, vermos a dos Estados Unidos no 7 de setembro. O Hino nacional mais parece trilha sonora de um filme que já não reconhecemos como nosso. E os nossos ídolos? Uns morreram, de fato, outros de esquecimento ou decepção. O que restou foi mitologia. Fala-se em Pelé como se fala de Hércules. Lembram de Ayrton Senna como de Ulisses: figuras de um tempo que parece cada vez mais distante, quase duvidoso de tão grandioso.

A juventude, aquela que antes tinha orgulho em dizer “eu sou do Acre”, agora cresce em um cenário onde a castanheira deixa de ser símbolo para virar quase lembrança. Nada contra a mudança de símbolos, nem de governos, mas não consigo aceitar a mudança de personalidade, onde mais de trinta mil pés rachados partem para longe e morrem fora de casa. O que era o local mais bonito do Brasil… será que ainda é? O patriotismo virou uma colcha de retalhos, nossa identidade carrega agora um GPS confuso: “Onde você mora no mapa?”

Jogamos ao vento a pergunta: O que está acontecendo com o mundo? E com o Brasil e com o Acre? No fundo, a pergunta não é só uma questão geográfica, mas existencial: o que aconteceu conosco? Procuramos em CEPs o que já não se encontra mais: lugares de gente de sorriso fácil e acolhedora, pessoas alegres e confiantes em dias melhores. Praças e points estão vazios; basta dar uma volta no parque da maternidade, onde jazem os “escombros” do Paço, do Emporium, da Confraria, da Praça Namoradeira…

No lugar de ídolos, existem influenciadores. No lugar do orgulho, hashtags. O esporte perdeu a mística do herói improvável, virou planilha e algoritmo. E o coração, coitado, bate mais devagar, com saudade daquele tempo em que acreditar valia mais do que entender.

Não me tomem por saudosista, aquele idoso chato que diz que tudo era melhor “no meu tempo”, de apenas 36 anos, mas havia mais vida e calor em tudo aquilo, numa intensidade que nenhum celular pode transmitir.

Ainda assim, enquanto houver quem se disponha a olhar pelo retrovisor, não como quem deseja voltar, mas como quem se recusa a esquecer, talvez reste esperança. Talvez, ao recordar nossos mortos, ídolos e símbolos, possamos encontrar o caminho para criar novos orgulhos. Talvez voltemos a acordar aos domingos, abrir a janela, sentir o cheiro da chuva na terra e lembrar que, um dia, fomos grandes. E podemos ser de novo, se não pelo que vemos, ao menos pelo que insistimos em lembrar.

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