Seis voluntários que ajudaram nos resgates que ocorreram durante as enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul, entre abril e maio do ano passado, estão processando a empresa de armas Taurus. O grupo alega que foi ‘enganado’, pois foi acionado para salvar crianças que estariam ilhadas, mas ao chegar no local, teve que resgatar armas. Eles pedem uma indenização de pouco mais de R$ 1,2 milhão, não só à empresa, mas também à União.
De acordo com a ação, no dia 8 de maio de 2024, dois deles receberam uma mensagem de áudio encaminhada para um grupo, em que um homem relata desesperadamente que precisa de quatro barcos de alumínio, com borda alta, ao menos seis metros, e motores potentes para uma missão urgente e extremamente sigilosa.
Nela, os voluntários resgatariam crianças que estariam ilhadas na capital do Rio Grande do Sul. Apesar de não conhecem o autor da mensagem, conseguiram mais informações via redes sociais, e viram que o homem era próximo de um influenciador que também estava auxiliando nos resgates.
Eles foram atrás das embarcações, materiais para o salvamento e de uma equipe maior para atender ao chamado. Um deles até se preocupou com o estado das crianças, verificando se precisava de um médico para atendimento durante a ação, e conseguiu uma profissional para auxiliar no apoio da operação de resgate.
“Todos os voluntários estavam absolutamente ansiosos, porque acreditavam que crianças corriam perigo e eles eram os encarregados pelo salvamento e a responsabilidade que pesa sobre isso. Cada minuto que passava, era um minuto em que não estavam onde acreditavam que precisariam estar –no resgate das crianças. O sentido de aflição crescia exponencialmente”, apontam os advogados dos autores do processo.
No dia seguinte, eles rumaram de Capão da Canoa com um caminhão de guincho, dois barcos e mais dois carros, em direção ao Centro de Canoas, onde seria informado o local onde as crianças estavam em perigo.
Desconfiança de ser uma emboscada e descoberta da ‘armação’
O grupo desconfiou da questão do endereço só poder ser informado presencialmente, e questionou os motivos pelos quais a operação de resgate de crianças era realizada sob tanto sigilo. Ele recebeu a resposta de que poderiam haver “o perigo de inúmeras embarcações e pessoas inexperientes rumarem até o local”, e gerar uma grande confusão.
A situação estava esclarecida para eles, que continuavam a receber áudios de pessoas falando sobre a gravidade da situação, e pedindo para que chegassem ao local o mais rápido possível. Inclusive, conforme os advogados, um dos homens que tratava do resgate, afirmou que se, caso alguma viatura os parasse, bastava que ligasse para ele, pois faria com que os policiais fizessem a escolta.
Quando chegaram ao local, foram apresentados à uma mulher que seria a responsável pela operação e questionaram sobre o estado das crianças. Nesse momento, foram informados de que o real motivo para estarem lá seria o resgate de um arsenal de mais de 3 mil armas da Taurus. O material estaria ilhado no terminal de cargas internacionais do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre.
“Segundo a representante [da empresa], os autores foram chamados para uma operação extremamente secreta com necessidade de civis para não despertar atenção de eventuais facções criminosas. E reiterou, repetidas vezes, com muita ênfase, que a existência do material bélico era de conhecimento restrito da empresa Taurus e das equipes da elite da Polícia Federal, portanto, não precisariam se preocupar”, aponta a defesa dos voluntários.
Ainda segundo os voluntários, a coordenadora da ação manteve a todo o momento “um discurso coercitivo”, dizendo que a missão era “muito mais importante do que resgatar os indivíduos das enchentes”, pois estaria salvando muito mais pessoas ao evitar que as armas caísse nas mãos de criminosos.
Eles teriam se negado, mas a mulher teria dito que, embora ninguém fosse obrigado a ir, aqueles que se recusassem, deveriam aguardar com outros agentes no local até o término da operação, pois sabiam do que se tratava o resgate.
“Isso significava que declinar a proposta implicaria em ficar sob observações de homens armados – desconhecidos e que não se tratava de agentes policiais – durante um período indeterminado em um local desconhecido. Neste momento, aquelas pessoas que observavam os autores à distância chegaram perto, e a pressão ficou insuportável. Trata-se, pois, de um constrangimento flagrantemente ilegal”, afirma de defesa.
Na mira de snipers
Eles foram levados até um Posto da Polícia Rodoviária Federal na BR 290, e a mulher pediu para que não levasse o celular. O grupo pediu para que fossem lhes dado coletes a prova de balas, devido a seriedade da ação, mas tiveram o pedido negado. Ao colocarem o barco na água, a representante da Taurus avisou snipers da Polícia Federal para avisar sobre o deslocamento que duraria de 15 a 20 minutos.
Em dado momento, os funcionários salientaram novamente que os voluntários não fizesse o uso de celulares e nem fizessem qualquer tipo de movimento brusco, pois estavam “adentrando na linha de tiro dos atiradores de elite estrategicamente posicionados em cima dos telhados dos prédios”.
Além do medo de ser atingido por algum disparo e de lidar com cenário caótico, o grupo se deparou com outro desafio ao chegar no terminal: os sete seriam os responsáveis por organizar a logística do resgate do armamento. Eles removeram pouco mais de 156 caixas de material bélico, cada uma pesando em média 60kg.
Além disso, dois dos voluntários levaram sozinhos, sem qualquer escolta, 16 caixas de armas em um trajeto de barco entre o Aeroporto Salgado Filho e o Posto da Polícia Rodoviária Federal na Freeway. “Poderiam errar o caminho, ser abordados por criminosos ou mesmo serem vítimas dos próprios snipers, haja vista a ausência de qualquer escolta oficial”, frisa a defesa.
Diante disso, a defesa do grupo alega que eles, como civis, foram expostos e enganados, ao serem levados a acreditar que o resgate seria de crianças. Além disso, os advogados expõem que tanto a empresa quanto a PF alegaram para o jornal ABC+ de Novo que “não têm conhecimento da participação de civis na remoção das armas”, e que Polícia confirmou a informação sobre arsenal no terminal de exportação já havia vazados para uma facção criminosa, que estaria planejando roubá-la.
Em virtude disso, o grupo pede que sejam indenizados em R$ 1.270.800 e que o Ministério Público Federal seja intimado.
O outro lado
Ao Terra, a Taurus afirmou que o processo judicial não é procedente, conforme foi demonstrado e comprovado pela empresa em sua defesa. Além disso, alegou que a operação foi determinada e coordenada pela Polícia Federal e que a empresa não realizou recrutamento de voluntários civis.
Já a Advocacia-Geral da União confirmou que foi citada e defendeu a inexistência de responsabilidade civil da União no caso, e jogou a responsabilidade para a Taurus.
“Segundo a AGU, se houve algum ato que importe na responsabilização civil foi decorrente da conduta da empresa co-réu, proprietária do material bélico e responsável pelo seu transporte e armazenamento conforme as normativas específicas de regência. A União, que tinha o dever de proteger a área do terminal aeroviário evitando saques, não seria a responsável pelo transporte dos materiais ou armazenamento dos mesmos em outro local”, finalizou.
A reportagem também procurou a Polícia Civil, mas não teve retorno até o momento. O espaço permanece aberto para manifestações.