O Acre entre dois mundos: domínio das facções criminosas e queda nos homicídios

A Amazônia virou um tabuleiro onde o crime organizado disputa espaço palmo a palmo — e o Acre ocupa uma das posições mais valiosas desse jogo. Encravado entre Peru e Bolívia, cortado por rios extensos e áreas de fiscalização precária, o estado deixou há muito de ser periferia para se tornar um corredor premium para tráfico de drogas, armas e dinheiro. Essa geografia explica muito mais do que a simples presença das facções: ela ajuda a entender por que o comportamento dos homicídios mudou de forma tão brusca nas últimas duas décadas.

A série oficial de 2004 a 2025 mostra que o Acre viveu, durante anos, um cenário de violência relativamente estável, com variações entre 139 e 200 mortes anuais. Tudo muda em 2016. A partir daquele ano, com a chegada das grandes facções e a ruptura de alianças locais, os homicídios deixam de refletir conflitos isolados e passam a expressar uma guerra por território e mercado. O salto para 355 mortes em 2016, seguido do recorde histórico de 503 em 2017, marca a transição definitiva entre dois períodos: antes de 2016, a disputa era local; depois de 2016, virou disputa empresarial.

O impacto dessa ruptura estende-se até 2018, quando o estado registra 396 homicídios — ainda muito acima da média histórica. Somente a partir de 2019 os números começam a descer com consistência: 281 homicídios em 2019, 280 em 2020, 206 em 2021, 180 em 2022 e 192 em 2023. Em 2024, o Acre atinge 137 mortes, o menor volume em mais de 15 anos. Em 2025, até outubro, foram contabilizadas 133 mortes, mantendo a tendência de queda.

Menos mortes, mais domínio

Essa redução, porém, não significa perda de força das facções. Significa apenas outra fase da disputa. Quando o território se estabiliza — quando um grupo estabelece domínio e o rival recua ou se recompõe — a contagem de mortos diminui. Mas a estrutura criminosa continua ativa, mais discreta e mais eficiente.

O retrato de outubro de 2025 deixa isso claro: dos 15 homicídios registrados no estado, sete têm ligação direta com a guerra entre grupos rivais. As demais ocorrências se dividem entre motivações diversas e casos ainda em investigação. O predomínio do crime organizado aparece também no tipo de armamento: dois terços das mortes foram causadas por arma de fogo, elemento diretamente associado ao controle territorial.

A distribuição dos casos revela outra faceta da disputa. O interior do estado registrou oito homicídios no mês, enquanto Rio Branco ficou com sete. A geografia explica essa interiorização: Tarauacá funciona como entreposto fluvial; Assis Brasil como porta tripla para Peru e Bolívia; Feijó como corredor intermediário; Brasiléia e Epitaciolândia como área de circulação rápida entre fronteiras. Já Rio Branco concentra 9 das 15 mortes do mês, especialmente nas 1ª e 2ª Regionais, zonas que historicamente registram retaliações e cobranças internas entre organizações rivais.

O perfil das vítimas expõe o recrutamento agressivo de jovens pelas facções. Um terço dos mortos em outubro tinha entre 18 e 29 anos — faixa preferida pelos grupos pela disponibilidade, vulnerabilidade social e baixa perspectiva de ascensão econômica. A violência, porém, não se limita a essa faixa: há adolescentes, adultos de meia-idade e moradores acima de 40 anos, mostrando que cada região sofre conforme a mecânica local da disputa.

Mesmo com operações integradas entre forças estaduais, Polícia Federal, PRF e Forças Armadas, o desafio amazônico está além da repressão imediata. Isolamento geográfico, ausência histórica do Estado, baixa oferta educacional, falta de empregos e distâncias gigantescas criam um ambiente onde o crime organizado ocupa lacunas com rapidez e eficiência. Ali, a organização criminosa não é apenas um problema: é, muitas vezes, a única estrutura funcional presente no território.

O Acre se tornou peça central na rota internacional do narcotráfico e, ao mesmo tempo, laboratório de políticas que tentam frear um fenômeno que se alimenta de desigualdade, abandono institucional e logística natural. A queda dos homicídios mostra que avanços ocorreram. Mas também deixa uma mensagem clara: enquanto as facções mantiverem capilaridade em todos os municípios, o silêncio das balas não significa paz — significa apenas que, por enquanto, quem manda está mandando sem ser contrariado.

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