
Durante mais de quatro décadas, João Teixeira de Faria, o médium João de Deus, ergueu um império religioso em Abadiânia, Goiás. De um vilarejo pacato, transformou a cidade em destino internacional de fé. Caravanas vindas de todos os cantos do Brasil e do mundo lotavam a chamada “Casa Dom Inácio de Loyola”. Ali, o médium realizava cirurgias espirituais, fazia incisões sem anestesia, impunha as mãos sobre enfermos e prometia a cura de doenças que a medicina convencional não alcançava. Presidentes, artistas e empresários atravessaram o portão em busca de alívio.
Por trás da devoção, porém, escondia-se um padrão de violência cuidadosamente mantido em silêncio. Mulheres eram chamadas para atendimentos particulares, sob o pretexto de receber uma “limpeza espiritual” ou um “passe especial”. No interior das salas, longe das câmeras e da multidão, eram vítimas de abuso sexual. Muitas permaneceram caladas por medo, vergonha ou pela pressão psicológica de uma comunidade que tratava o médium como intocável.
O silêncio começou a ruir em dezembro de 2018, quando o programa Conversa com Bial, da TV Globo, exibiu o relato de dezenas de mulheres. A denúncia, liderada pela holandesa Zahira Lieneke Mous, ecoou em todo o país. Em poucos dias, o Ministério Público de Goiás recebeu centenas de novos depoimentos. O que parecia um caso isolado revelou-se uma engrenagem de abusos sistemáticos, praticados por décadas sob o manto da fé.
As investigações apontaram mais de 300 vítimas formais. João de Deus foi denunciado por estupro, estupro de vulnerável, violação sexual mediante fraude, posse ilegal de armas e lavagem de dinheiro. A cada nova audiência, o ícone espiritual se convertia em símbolo de exploração da credulidade humana. A Justiça o condenou em diversas ações, somando quase 490 anos de prisão.
Aos 82 anos, debilitado por problemas de saúde, cumpre pena em regime domiciliar em sua casa em Anápolis, monitorado por tornozeleira eletrônica. A residência, cercada por câmeras, é um contraste com o passado de multidões que o reverenciavam em Abadiânia. O médium que um dia atraiu políticos e estrangeiros agora vive recluso, longe da glória e cercado pela sombra de suas vítimas.
O impacto do caso foi devastador. Abadiânia, que vivia do turismo religioso, sofreu colapso econômico. O Brasil, já marcado por escândalos envolvendo líderes religiosos, precisou encarar uma ferida mais profunda: como a fé pode ser instrumentalizada para manipular, explorar e violentar. João de Deus não apenas cometeu crimes — ele desmontou a confiança de milhares de pessoas em qualquer promessa de cura espiritual.
*Amaro Alves foi repórter de polícia até se aposentar, em 2009; vive atualmente em Belém (PA), de onde escreve com exclusividade para oacreagora.com