A música “Quando É Pra Trabalhar Nego Pode”, de João Grilo, é um soco no estômago da história. Ela fala de correntes, mas não as que estão nos museus, fala das que ainda rangem, disfarçadas de relógio de ponto.
No passado, o “nego” era propriedade, um corpo marcado pelo chicote do sinhô. Hoje, o “nego” é funcionário, um corpo marcado pelo cartão de ponto. A senzala virou escritório, o feitor virou chefe, e o castigo físico virou assédio moral. Mas a pergunta da música ainda ecoa: “Maria, cadê meu ponto?”. Porque, no fim, o trabalho sempre foi uma armadura pesada para quem nasceu com a pele errada.
Antes, o escravo apanhava se parasse. Hoje, o trabalhador é demitido se não bater meta. O verso “Quando cansa sinhô bate, quando para sinhô chuta” poderia ser a descrição de um Uber precarizado, de um entregador de app ou de um operário terceirizado. A força bruta não sumiu; só trocou de uniforme.
E aí está a ironia mais cruel: “Na fazenda era castigo, e hoje é ponto pra bater.” O chicote era visível, mas o algoritmo que controla o tempo do trabalhador moderno é invisível. O sinhô do século XXI não grita ordens, ele envia e-mails depois do horário, cobra produtividade em aplicativos e paga salários que não acompanham a inflação.
A música termina com um refrão que parece zombaria: “Olha o nego, meu sinhô.” É como se o compositor dissesse: “Olhem bem, porque o nego ainda está aqui, só que agora com CNPJ”.