O Colegiado da Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado pode ter favorecido a grilagem de terras da União distribuídas para reforma agrária ao decidir, por unanimidade, acompanhar o parecer da relatora, desembargadora Eva Evangelista, nos autos 0700146-95.2021.8.01.0022.
A decisão retira a posse do agricultor João Souza Malfortes, assentado há mais de 20 anos, e transfere um lote de 48 hectares do Projeto de Assentamento Tocantins, na região de Porto Acre, à responsável pelo Espólio de Domingos Souza de Almeida. Francimara Melo de Araújo representa o único herdeiro de Domingos Souza de Almeida, atualmente com 15 anos. Na época do falecimento, o casal estava separado havia sete anos, mas, como guardiã do herdeiro, Francimara abriu o inventário e, ao descobrir a existência de um cartão de assentamento em nome do ex-marido, incluiu o lote de terra da União nos bens a partilhar.
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O inventário foi aberto em Rio Branco e, em seguida, Francimara moveu uma ação de reintegração de posse na comarca de Porto Acre contra o ex-cunhado, João Malfortes, alegando que ele havia invadido a terra somente após o falecimento do irmão.
Possíveis erros judiciais
Conforme o Art. 17, § 10 da Lei 13.001/2024: “falecendo qualquer dos concessionários do contrato de concessão de uso ou de CDRU, seus herdeiros ou legatários receberão o imóvel, cuja transferência será processada administrativamente, não podendo fracioná-lo”. Caso os herdeiros não atendam aos critérios de assentamento, ou não demonstrem interesse ou capacidade para trabalhar no lote, o terreno deve retornar ao banco de terras públicas.
No entanto, o Juízo do inventário desconsiderou o critério estabelecido no artigo e adjudicou o bem da União ao herdeiro, sem consultar o Incra, conforme relatou o Chefe da Divisão de Assentamento do órgão, Hildebrando Veras.
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Esse foi o erro do Juízo do inventário. O segundo erro partiu da Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, que reformou a sentença do Juízo da Comarca de Porto Acre, o qual havia julgado improcedente a ação de reintegração de posse. Com base no parecer da relatora, desembargadora Eva Evangelista, o Tribunal deu provimento ao recurso, autorizando a expulsão do posseiro legítimo da terra da União. Esse pedido já foi feito pelo advogado Silvano Santiago, representante do Espólio, e aguarda apenas o despacho da Juíza da comarca de Porto Acre para que a ordem seja cumprida.
O cartão de assentamento em nome da pessoa errada
Em 2000, João e Domingos indenizaram as benfeitorias do antigo posseiro, e o Incra emitiu o cartão de assentamento em nome de Domingos. No entanto, em 2003, Domingos obteve uma concessão pública de mototaxista em Rio Branco, perdendo assim o direito ao lote. Desde então, João Malfortes, que realizou todas as benfeitorias no local, permaneceu na posse do lote. Isso foi reconhecido pela Juíza da Comarca de Porto Acre ao julgar improcedente a ação de reintegração de posse.
Venda ilegal do lote
A reportagem apurou que, antes mesmo da decisão judicial, Francimara já havia vendido o lote de terra da União a terceiros por R$ 280 mil. Após a venda, ela empenhou-se em influenciar o Judiciário para que o comprador pudesse tomar posse da propriedade, situada no ramal Boa Esperança, Lote 360, Gleba Tocantins, em Porto Acre, com 48,1829 hectares.
Versão do Incra
O Chefe da Divisão de Assentamento do Incra, Hildebrando Veras, afirmou que ficou surpreso com a decisão judicial, pois o órgão não foi consultado em nenhum momento, mesmo tratando-se de terras inalienáveis da União. Hildebrando ressaltou que a Lei Nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, determina que até a emissão do título de domínio, o beneficiário não pode vender, alugar, doar, arrendar ou emprestar o lote a terceiros. Segundo ele, o que ocorreu foi um erro judicial, além de estelionato e crime de grilagem.
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“Vamos fazer uma vistoria no lote, e o João pode iniciar o processo no Incra para documentar sua posse. Vou encaminhar essa decisão para o nosso setor jurídico e pedir um posicionamento quanto à situação. A terra é do Incra, pertence à União, e o João, até que o Incra diga o contrário, deve permanecer no lote”, declarou Hildebrando Veras.
Para evitar mais contratempos ou medidas que retirem João Malfortes da propriedade, Hildebrando orienta que ele dê entrada no Incra com documentos que comprovem sua posse e pleiteie a titularidade definitiva.
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“Ele deve iniciar o processo de regularização, reunindo documentos e testemunhos que comprovem sua posse. Assim, ele poderá solicitar a regularização na Sala de Cidadania do Incra. Até que o Incra diga o contrário, ele permanece no lote, que ocupa há 24 anos”, afirmou Veras.
Resposta do Tribunal de Justiça
Nossa reportagem contatou a assessoria de comunicação do Tribunal de Justiça do Acre sobre os possíveis equívocos jurídicos, mas, embora tenha prometido retorno via WhatsApp até o fechamento desta edição, não houve resposta. O espaço permanece aberto para esclarecimentos.