– Boa tarde.
Eu disse sem perceber o fone de ouvido que ela usava. O silêncio foi sua resposta. Uma moça bonita, aparentemente vinte e poucos anos, tinha o cabelo roxo e um piercing em forma de argola no nariz. Vestia uma camiseta com a frase: “Eu decido o que fazer com meu corpo. Aborto legal já!”.
Deu vontade de bater um papo com ela sobre o assunto. Saber mais profundamente o que a moça de cabelo roxo pensava sobre o tema. Por que ela militava em favor do aborto, se já havia feito etc… Mas o elevador chegou ao sétimo andar e eu tive que descer.
– Tchau. Falei.
Mais uma vez o silêncio foi sua resposta. O que será que ela estava ouvindo? Desci do elevador curioso e pensativo. Curioso com o gosto musical da jovem bonita de piercing no nariz. Pensativo sobre o tema de sua camiseta.
Poucos dias atrás o país assistiu perplexo ao caso da menina de 10 anos que fora estuprada pelo tio, e engravidou. Sim, isso mesmo: somente dez anos de idade! A Justiça autorizou que a menor realizasse o aborto. Não sei o que mais me enojou: a violência do tio monstro ou o grupo de pessoas gritando em frente ao hospital, onde fora realizado o procedimento, palavras ofensivas contra a menina. “Assassina”!, gritavam. Indiscutivelmente, o tio que estuprou a sobrinha durante quatro anos é um monstro e merece todo o rigor da lei. Mas essa turma que foi chamar a criança estuprada de “assassina” merece ser chamada de que?
O arcebispo de Belo Horizonte e presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Walmor Oliveira, disse que ao autorizar o aborto, a Justiça cometera dois crimes hediondos. “A violência sexual é terrível, mas a violência do aborto não se justifica, diante de todos os recursos existentes e colocados à disposição para garantir a vida das duas crianças”. Me deu vontade de bater à porta da jovem bonita para ouvir a sua opinião sobre a fala do bispo.
No Brasil, desde 1940 o aborto é considerado legal quando a gravidez é resultado de abuso sexual ou põe em risco a saúde da mãe. Além disso, em 2012 um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu que também é permitido interromper a gestação quando se detecta que o feto é anencéfalo , ou seja, não possui cérebro.
Nos últimos anos, países como Espanha, Portugal e Uruguai, tornaram legal a prática do aborto. Na Espanha, a despenalização da prática ampliou a autonomia das mulheres. O Uruguai implementou uma política pública de saúde com foco na redução de riscos, que desde 2004 reduziu o número de mortes de mulheres por abortos clandestinos. Em Portugal, o movimento feminista se aliou aos profissionais de saúde para levar informação baseada em evidências à sociedade, que em 2007 disse sim à legalização do aborto em um referendo.
No Brasil, em um evento religioso no mês de abril deste ano, o presidente Jair Bolsonaro declarou que “enquanto for presidente não haverá aborto legal no país”. No ano de 2008, o então presidente Lula defendeu, na abertura da 11° Conferência Nacional dos Direitos Humanos, o debate sobre o aborto no Brasil. “Uma das coisas mais ofensivas é o preconceito, o medo de não discutir determinados temas que acabam virando tabu, como o aborto. Não se trata de ser contra ou a favor, mas de discutir de forma franca, pois essa é uma questão de saúde pública”. Em entrevista à Folha de São Paulo, em 2011, o também ex-presidente Fernando Henrique Cardoso foi enfático ao ser questionado sobre o tema: “Não pode ser crime”.
A única certeza que tenho é que a criança que fora estuprada pelo tio desde os seis anos de idade, e engravidou aos dez, é vítima e não assassina, como gritaram alguns em frente ao hospital onde foi realizado o aborto.
E você, o que pensa sobre o tema?