Foi em meados da década de 1980 que o caso aconteceu. Por essa época, eu morava em Macapá, capital do Amapá. E por lá exercia a função de repórter policial – a única coisa que arrisquei fazer profissionalmente nesta vida.
Estava na redação do jornal quando recebi o telefonema com a informação de um homicídio. Os celulares ainda não existiam. E tampouco a internet como a conhecemos hoje.
Minha fonte dizia que um crime havia acabado de ocorrer no cruzamento entre a Avenida Pará e a Rua Guanabara, no bairro Pacoval. O fotógrafo e eu nos dirigimos às pressas ao local. Em volta, uma multidão já se havia formado.
A cena do assassinato era um bar. E a vítima, um meliante conhecido nas redondezas por chefiar a gangue do Beco do Amor. O autor do disparo, dono do estabelecimento, havia se evadido. As portas já estavam cerradas para o público. Só a polícia podia entrar e sair.
As informações me foram sendo passadas aos poucos. Algumas por policiais, que iam tomando pé da situação. Outras, mais relevantes, por testemunhas. Em alguns minutos já havia reconstituído a história, sempre a anotar os detalhes cruciais.
Tudo começou após a chegada da vítima ao local. De pé diante do balcão de madeira, o sujeito – conhecido por seu histórico de arruaças, roubos, brigas, estupros, ameaças e etc. –, pediu uma dose de cachaça. Pelo comportamento, parecia ter passado a noite insone. Era provável que estivesse drogado.
Após entornar o primeiro copo, pediu outro. E foi servido pelo dono do estabelecimento, um cearense de pele branca e cabelos ruivos, atarracado e sempre com cara de poucos amigos.
Engolida a segunda porção da bebida, ele pediu uma terceira. Mas o proprietário negou, antes solicitando o pagamento das doses anteriores. Foi aí que a coisa desandou.
Acostumado a aterrorizar na região onde dominava pela força de sua truculência, o sujeito se negou a pagar. O dono do bar insistiu. Mas o outro não cedia. Até que veio a pergunta fatal:
– Tu não vai pagar a cachaça?
E o outro vociferou que não.
O comerciante então, num movimento rápido, sacou de sob o balcão um revólver calibre 38 e mirou na cabeça, antes de puxar o gatilho. O corpo desabou no mesmo instante. E ainda jazia no chão quando chegamos para fazer a cobertura jornalística.
O fotógrafo não recebeu autorização para entrar, tendo feito as fotos do lado de fora. E seu trabalho acabou prejudicado pela falta de luz.
Se as fotos eram ruins, as informações eram boas. E houve desdobramentos.
Morto o chefe, os membros da gangue se reuniram para retaliar. Com a intenção de atear fogo ao estabelecimento, os bandidos esperaram a madrugada e tentaram invadi-lo pelo depósito, onde um irmão e um primo do foragido haviam montado guarda. Houve novos disparados de arma de fogo, e a polícia acabou sendo chamada por vizinhos.
Mais de três décadas depois desse episódio, lamento não ter mantido as anotações com os nomes dos envolvidos, bem como não ter guardado os recortes das matérias que fiz.
Entro no Google Maps para rever a cena do crime. E constato, sem qualquer surpresa, que o bar de madeira e aspecto decadente foi substituído por uma promissora empresa de distribuição de alimentos.
As ruas também sofreram mudanças significativas, apesar de os nomes continuarem os mesmos.
Mudaram também os bandidos, agora organizados em facções que até a polícia teme enfrentar.
Mas o que não muda é a regra de ouro segundo a qual, para cada valentão que existe neste mundo, haverá sempre outro ainda mais destemido que o primeiro.
*Amaro Alves foi repórter de polícia até se aposentar, em 2009; vive atualmente em Belém (PA), de onde escreve com exclusividade para oacreagora.com